Trotsky: glória e agonia de um revolucionário

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Trotsky no exílio mexicano.

No dia 21 de agosto de 1940, um golpe de picareta perfurou o crânio de uma das figuras mais dramáticas do século XX. A massa encefálica responsável por gestar boa parte da base teórica da esquerda até então vazou pela fenda no osso.

O pesadelo de Leon Trotsky terminava ali, em Coyoacán, México, país em que vivia exilado há quatro anos. Não porque tivesse particular predileção por climas tropicais ou pela música mariachi (ele nem mesmo falava espanhol), mas porque fora o México o único país que aceitara lhe dar abrigo quando seu rival político, Joseph Stálin, iniciou a campanha internacional que pretendia – e conseguiria – matá-lo. Nos quatro anos que passou ali, viveu praticamente em prisão domiciliar, em permanente paranoia; ele e seus assessores mais próximos temiam constantemente serem alcançados pelos tentáculos do Grande Terror; diuturnamente, trabalhavam para desmentir as calúnias geradas pela máquina comunista e influenciar de alguma forma os rumos Revolução, que àquela altura se transformara numa eficiente máquina de moer carne.

Trotsky, qualquer um que tenha frequentado os bancos escolares sabe, foi o revolucionário-símbolo. Braço direito de Lênin, alcançou a glória em 1917, quando o antes insignificante Partido Bolchevique armou as massas famintas do pós-guerra e tomou de assalto o poder central na Rússia czarista. Homem de ideias e de ações, capaz de eletrizar multidões com sua retórica explosiva, foi o grande responsável por, depois, resistir às investidas da contrarrevolução; forjou, a partir de soldados exaustos e camponeses esfarrapados, o Exército Vermelho, e o liderou com mão de ferro e nenhuma tolerância para com a dissidência na sangrenta guerra civil de 1918.

Inapto para as disputas políticas mais comezinhas, por conta de uma intransigência de ideias e de um senso de justeza que o incapacitava para o xadrez palaciano, assistiu a Stálin sequestrar o poder quando Lênin sucumbiu à doença. Proscrito, viu o sonho do socialismo, a democracia internacional dos trabalhadores, degenerar em Estado burocrata e policial nas mãos de um psicopatológico ditador. Sua família e seus camaradas foram esmagados. Perseguido, caluniado, colocado no campo de inimigo da Revolução, falido e destroçado pela dor, foi expulso de país em país – Turquia, França, Noruega – até se estabelecer, equilibrando-se na borda do caldeirão, no México.

Trotsky queria ver o triunfo pleno da Revolução, corrigir seus rumos. Acabou sendo tachado internacionalmente como o grande inimigo a ser batido. Em uma das passagens mais surreais, foi acusado de se aliar nos bastidores a Hitler, para destruir a Rússia soviética – Hitler, o pólo ideológico diametralmente oposto a Trotsky, um homem por quem Trotsky, como qualquer ser humano sensato, nutria a mais completa ojeriza. (A ironia: pouco tempo depois, quem se aliou a Hitler foi Stálin, por meio do Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético, no início da Segunda Guerra.)

Uma das principais questões sobre a vida de Trotsky é como ele, um dos líderes da Revolução Russa, um intelectual que inclusive o Ocidente reconhecia como brilhante, perdeu a disputa de poder para um burocrata obscuro e obtuso, cuja única característica mais nítida era uma disposição aparentemente sem limites para assassinar.

Como quase tudo na vida, isso tem mais de uma explicação. Algumas históricas – Trotsky arcou com boa parte do ônus das medidas necessárias para tirar da ruína a Rússia pós-Revolução e guerra civil – e outras à primeira vista banais – ele não compareceu, por exemplo, ao enterro de Lênin, por estar acamado numa região muito distante de Moscou, o que mesmo assim fez muito mal à sua imagem pública. Uma outra variável da equação: os modos teatrais de Trotsky, com seus cabelos revoltos e cavanhaque em ponta, seu temperamento irritadiço, seu pouco apego às convenções sociais (“Vestir-se, comer – todas essas coisas deploráveis e mesquinhas que temos de repetir diariamente!”, reclamou ele certa vez) e uma ética de trabalho cuja exigência para com os camaradas ia muito além do razoável o tornavam um péssimo homem de gabinete. Max Eastman, biógrafo e tradutor do Velho – como se referiam a Trotsky seus assessores mais próximos – o descreveu certa vez desta maneira: “Exceto por sua silenciosa e gentil esposa, com quem era um modelo de constante cortesia e inesgotável consideração, ele não tinha, em minha opinião, nenhum amigo de verdade. Ele tinha seguidores e subalternos que o adoravam como a um deus, e em relação aos quais sua frieza e insensata impaciência e irascibilidade era uma parte do quadro… Mas numa relação estreita e de igualdade, ele conseguia deixar quase todo mundo ‘magoado’. Um após outro, homens fortes sentiam-se atraídos por ele em razão de seus feitos e seu raciocínio íntegro e brilhante. Um após outro, eles se afastavam”.

Seja como for, Trotsky fizera inimigos poderosos e na segunda metade da década de 30 os partidos comunistas mundo afora, orientados pelo stalinismo, orquestravam uma incansável campanha de difamação a fim de criar o ambiente político propício para um atentado; o Partido Comunista mexicano chegou a fazer uma campanha pregando explicitamente: ‘Morte a Trotsky’.

O atentado veio, como tudo o mais na vida do Velho, carregado de dramaticidade, num roteiro que não deve nada aos mais delirantes filmes de espionagem hollywoodianos. Trotsky foi morto por alguém que considerava um aliado, um agente da polícia secreta de Stálin que se infiltrara em seu círculo mais próximo ao estabelecer um relacionamento amoroso com uma de suas secretárias; o golpe fatal de picareta que perfurou seu crânio foi dado dentro de seu escritório.

O Velho agonizou por um dia inteiro num hospital mexicano. Enquanto ainda tinha alguma consciência, ditou um comunicado à imprensa. Suas últimas palavras foram: “Por favor, diga aos meus amigos que tenho certeza da vitória da Quarta Internacional. Continuem!”.

Ele jamais esmorecera. Algum tempo antes, havia escrito a um desanimado camarada: “Indignação, ira, repugnância? Sim, até cansaço. Tudo isso é humano, extremamente humano. Mas não acreditarei que você sucumbiu ao pessimismo. A história tem de ser tomada como é; mas quando ela se permite tais extraordinários e imundos ultrajes, devemos lutar para contê-la com nossos próprios punhos”.

Mas agora o Velho estava morto. Outros teriam de se encarregar da História.

Sandoval Matheus,
Assessoria de Comunicação do Sinditest-PR.

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