Por Cacau Pereira
A utilização de tecnologias de ponta para o acesso a vários serviços é uma das características da modernidade. Com um celular à mão é possível fazer compras, realizar pagamentos, inscrever-se num concurso, fazer a declaração do imposto de renda, simular a aposentadoria, dentre outras facilidades.
Pensada para o mundo empresarial, inicialmente, a utilização de ferramentas digitais é hoje uma realidade também nos serviços públicos. No caso do Brasil, o ano 2000 marca o início dessa mudança de conceito na oferta dos serviços públicos. Naquele ano foi criado o Comitê Executivo do Governo Eletrônico (CEGE), marco inicial dessa mudança, com a adoção de conceitos de inovação tecnológica. Em 2004 foi criado o Portal da Transparência.
O breve governo de Michel Temer deu forte incremento a essa política, instituindo a Política de Governança Digital, a Política de Dados Abertos do Poder Executivo Federal e a Plataforma de Cidadania Digital. Tudo isso no ano de 2016.
O atual governo federal alardeia que, hoje, o Brasil seria o sétimo país do mundo em governo digital – o chamado GovTech – entre 198 países que foram avaliados pelo Banco Mundial. Mas, será que é assim mesmo?
À primeira vista, essas mudanças parecem algo muito bom, pois podem facilitar o acesso a diversos serviços, diminuir a burocracia, evitar o trânsito e o deslocamento do cidadão. Hoje, são diversos os serviços oferecidos por meio digital, para milhões de pessoas. Para citar alguns, temos o Meu INSS, a carteira de trabalho digital, a carteira de motorista digital, a inscrição no ENEM, o Conecta SUS, a declaração do imposto de renda, dentre outros serviços.
Exclusão digital
A coisa é, no entanto, mais complicada. Aproximadamente 50 milhões de pessoas estão fora do mundo digital no Brasil. Estão excluídas porque o serviço é muito caro ou por não possuírem um aparelho com conexão à rede. Uma em cada cinco pessoas no país só acessa a rede digital emprestando a conexão de um vizinho. São dados de uma pesquisa realizada em 2021 pelo Centro Regional de Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic).
Portanto, pensar na digitalização dos serviços públicos sem universalização do acesso gratuito à internet e aos equipamentos necessários (computadores, celulares, tablets etc.) é repassar a conta da inovação tecnológica para o bolso do cidadão, prejudicando, principalmente, aqueles de baixa renda.
Outro aspecto muito importante é que esse marco legal criado no governo Temer estava voltado a pavimentar o caminho para novas reformas da administração pública, com o intuito de diminuir os gastos públicos e o número de servidores ativos e estáveis. Os estudos do Banco Mundial que têm servido de base para as reformas administrativas recentes, apontam que, neste ano de 2022, cerca de 170 mil servidores federais estarão em condições de se aposentar. A estratégia do governo digital, portanto, mais do que facilitar o acesso do cidadão aos serviços públicos, visa fazer uma grande economia de caixa para o governo, além de permitir contratações de servidores por recrutamento amplo e critérios políticos, burlando a regra do concurso público, como estava explícito na PEC 32/2020.
O emblemático caso do INSS
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) foi um laboratório dessa política de digitalização e consequente exclusão do acesso da população ao serviço público, por parte do governo federal. As consequências para os servidores e para a população foram terríveis. E não se trata dos efeitos da Covid-19, pois os problemas antecedem a pandemia. O último concurso para o cargo de técnico do INSS ocorreu em 2015, e previa a contratação de apenas 800 novos servidores.
Atualmente temos mais de 820 mil pessoas na fila somente para uma perícia médica, deixando de receber o benefício ao qual teriam direito. Um incremento de mais de 30% de pessoas desassistidas num direito fundamental: fazer a perícia para ter acesso ao benefício previdenciário, seja por motivo de doença ou acidente de trabalho, além das pessoas com deficiência que teriam direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS). A fila geral de espera – para todo tipo de benefício – já chegou a 1,8 milhão de processos em 2021. A situação é tão grave que o Supremo Tribunal Federal (STF) questionou o INSS e o órgão respondeu que a fila seria devido à falta de servidores.
Mas, o que ocorreu no INSS? O governo implementou uma plataforma digital (Meu INSS), reduziu o quadro de funcionários, não substituiu os servidores que foram se aposentando e deixou de realizar concursos públicos. O atendimento presencial nas agências também foi reduzido drasticamente, com a adoção do trabalho em domicílio dos analistas. O atendimento presencial passou a ser feito por trabalhadores terceirizados, sem a especialização necessária para essa função técnica, recebendo salários baixíssimos.
Faltam cerca de 2000 peritos médicos para dar conta do serviço, para ficar apenas nessa função da perícia. Isso sem contar os analistas e técnicos. A Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Saúde, Trabalho e Previdência Social (Fenasps) informa que o déficit de servidores é de cerca de 22 mil pessoas. Em junho de 2021 o INSS pediu ao Ministério da Economia a realização de concurso para preenchimento de 7.500 vagas.
No ano passado, para tentar diminuir a fila, o INSS impôs um regime de trabalho por metas, descarregando a conta da incompetência governamental nas costas dos atuais servidores do órgão.
Digitalização e pandemia
A pandemia da Covid-19 trouxe impactos para toda a população e acelerou essas experiências de governo digital, que foram justificadas pela necessidade de restrição da circulação das pessoas e para evitar aglomerações.
A tendência agora, se depender somente dos governos, é que essas iniciativas tenham seguimento e até mesmo acelerem. A transformação digital demonstrou ser um instrumento de gestão importante, gerando economia de gastos, ainda que às custas de penalizar a população.
Dentro da lógica de gestão empresarial que permeia o Estado brasileiro, em todas as suas dimensões, esse tende a ser um fator de embate, de conflito de interesses. Os sindicatos precisam se postar à frente desse debate, organizando os seus representados, mas também dialogando com a população que utiliza os serviços públicos.
Mas, a digitalização só traz ou embute problemas? Devemos ser conservadores quanto à inovação tecnológica? Isso seria possível num mundo cada vez mais conectado? No próximo artigo daremos seguimento a essa prosa, analisando os principais argumentos utilizados para a defesa desse novo formato de organização dos serviços públicos.
Cacau Pereira é pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS) e colabora com o Departamento de Formação do Sinditest-PR.