“A Reforma da Previdência implicará num brutal empobrecimento da população”

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Denise Gentil é economista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde defendeu sua tese de doutorado sobre a falsa crise da Seguridade Social. A pesquisadora do tema respondeu algumas perguntas sobre a Reforma da Previdência. Confira:

Sinditest | A principal justificativa para a Reforma da Previdência é a de que existe um déficit no sistema. Essa afirmação procede?

Denise Gentil | Não, não existe um déficit. Nas contas que eu faço e naquelas que a ANFIP e outros pesquisadores também fazem, não há déficit. A diferença entre o cálculo realizado pelo governo e as afirmações que nós fazemos é que seguimos o que está disposto nos artigos 194 e 195 da Constituição Federal para fazer o cálculo fiscal do resultado da Seguridade Social. Não tratamos a Previdência de forma isolada, mas como um dos pilares da Seguridade Social. A Previdência Social não é um mero seguro, ela é parte componente do sistema proteção social, o nosso welfare state, que chamamos de Seguridade, e que também inclui a Assistência social e a Saúde.

Sinditest | É isolando a Previdência que o governo chega ao resultado do déficit?

Denise Gentil |É isso mesmo, o governo isola a Previdência e, do lado das receitas, desconsidera a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, o PIS/PASEP, que financia o seguro desemprego, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins, e algumas receitas próprias que pertencem a órgãos da Seguridade Social. Com esse mecanismo o governo subestima as receitas. Por outro lado, infla os gastos ao colocar, do lado da despesa, as aposentadorias e pensões do regime de previdência dos servidores públicos, dos militares e dos funcionários dos antigos territórios federais. Ou seja, o governo não segue a Constituição. Sua fórmula de cálculo se transformou numa manobra contábil para fazer com que o sistema previdenciário pareça um sistema inviável.
Se for feito um cálculo totalmente apoiado na Constituição Federal, um cálculo não da Previdência Social, mas para a Seguridade Social, o resultado será outro.

A Seguridade nunca pode ser um sistema deficitário porque, se em algum momento esse conjunto de receitas não for suficiente para cobrir todas as despesas com saúde, previdência social e assistência social, então o orçamento fiscal da União deverá cobrir as necessidades de recursos dessas três áreas. É isso que diz a Constituição Federal. A União só teve que cobrir o orçamento da Seguridade no ano de 2016. Em todos os anos anteriores, havia um excedente de receitas sobre despesas que era desviado para pagar despesas que não pertencem à Seguridade.

O que ocorreu em 2016, de a União ter que patrocinar a Seguridade, foi porque o país entrou em uma grande recessão. O PIB não cresce desde 2014. Com o PIB em queda, as receitas da Previdência desabam, porque as contribuições sociais que incidem sobre a folha de salários são a maior receita do sistema. Mas existe um outro motivo que foi decisivo, que foram as desonerações que o governo concedeu às empresas ao longo do período 2011-2017. As desonerações são renúncias de receitas que o governo praticou com recursos que pertencem à Seguridade em benefício das empresas de vários setores, e isso prejudicou severamente o orçamento. Dentro dessas desonerações estão aquelas concedidas às empresas da Zona Franca de Manaus, ao Simples Nacional, às organizações religiosas, aos times de futebol, às entidades beneficentes supostamente sem fins lucrativos (hospitais e escolas), mas também às grandes empresas do setor financeiro. Há empresas desoneradas do setor de medicamentos, máquinas, equipamentos, biodiesel. Muitas dessas renúncias de receita da Seguridade foram feitas na expectativa de que aumentasse o investimento, mas não funcionou, os investimentos, ao contrário, caíram e as renúncias de receitas se transformam em aumento da margem de lucro sem contrapartida nenhuma para o bem-estar social. Recursos que deveriam estar aplicados no SUS, no Bolsa Família e nas aposentadorias e pensões serviram apenas para elevar a rentabilidade do setor privado. É um processo silencioso e galopante de privatização.

Há ainda um outro problema. Até julho de 2016, a União estava autorizada a desvincular 20% das receitas da Seguridade Social para gastar em qualquer outra área do orçamento. Esse mecanismo é chamado de Desvinculação das Receitas da União – DRU e representa outra forma de perda de recursos da área social. Ocorre que, durante o governo Dilma foi proposto que esse percentual aumentasse para 30% por meio de um projeto de lei que o presidente Temer colocou em votação quando ainda estava interino. Hoje, 30% das receitas da Seguridade podem ser extraídas e gastas onde o governo quiser, inclusive com o pagamento de juros da dívida pública, o que é um absurdo. Há um discurso, portanto, altamente contraditório, porque o governo diz que há um déficit na Previdência, mas, ao mesmo tempo, dilapida as receitas da previdência praticando renúncias de receitas e fazendo uso da DRU. Logo, é o próprio governo que leva o sistema ao déficit. Ele mesmo constrói o déficit que diz desejar combater e impõe para a sociedade o sacrifício de uma reforma da previdência que implicará num brutal empobrecimento da população.

Sinditest | De que maneiras as reformas trabalhista e previdenciária estão afetando e irão afetar o cotidiano da classe trabalhadora? Qual seria uma solução às reformas de Temer e outras medidas de ajuste fiscal?

Denise Gentil |Em primeiro lugar o deficit é algo que acontece em períodos recessivos em qualquer país. Há queda de PIB, salário, lucros, e portando, redução da arrecadação. Qualquer sistema previdenciário, até mesmo os mais perfeitos e bem administrados, entra em déficit em momentos de recessão econômica. O governo deve acomodá-lo, arranjar outros mecanismos para financiar as despesas. Se fizer o ajuste fiscal agravará mais ainda o déficit. Nesses momentos, a elevação da dívida é algo natural porque o governo vai recorrer à venda de títulos públicos para obter os recursos de que necessita. Em períodos de recessão não se deve fazer nenhum tipo de contração de gastos porque o PIB cairá mais rapidamente, já que o governo é o maior agente econômico de qualquer sociedade. A redução de suas intervenções provocará maior redução do PIB, o que, por sua vez, fará cair ainda mais as receitas e, portanto, o déficit aumentará, ao invés de diminuir. Nos momentos de recessão, o que se espera do governo é o oposto, ou seja, que ele aprofunde suas intervenções no sentido de proteger a população que fica desempregada, que vai precisar mais de serviços públicos de saúde, do seguro desemprego. Espera-se que o governo cumpra o seu papel de agente que retira a economia do ciclo recessivo, realizando investimentos e gastos sociais que injetarão demanda na economia, de forma a reativar o desejo dos empresários de investir no setor produtivo. O arrocho fiscal não é uma opção. É uma trama de extorsão que se vira contra toda a sociedade em benefício apenas dos credores da dívida pública. Então, a solução para um sistema previdenciário está, em primeiro lugar, na mudança da política econômica. Ao invés de arrocho fiscal, redução do crédito, câmbio valorizado e taxas de juros elevadas, precisamos de políticas que se voltem para o pleno emprego, para a reindustrialização do país, para as exportações, para a construção da infraestrutura econômica e social no setor de habitação, transportes, energia, saneamento básico, ou seja, precisamos desesperadamente da superação do subdesenvolvimento. O que quero dizer é que não é fazendo uma reforma paramétrica que se corrige um déficit na Previdência, se ele existisse. Não adiantará nada fazer reforma para cortar aposentadorias. Nada, mesmo. Não sairemos do círculo vicioso das reformas onde caímos desde 2003. Nosso problema é estrutural. Precisamos de um novo projeto de sociedade, um verdadeiro projeto de desenvolvimento, um projeto de nação solidária que tenha como meta central o combate à pobreza e à desigualdade.

Sim, alguém poderá perguntar de onde viriam os recursos para fazer tudo isso. O governo federal dispõe de várias possibilidades. Aliás, é o único agente capaz de ter tantas possibilidades. Pode se financiar através da venda de títulos públicos no mercado, através da emissão de moeda e do aumento de impostos em setores que até hoje são tratados com privilégios tributários inexplicáveis. Pode praticar tributação nas faixas da população de renda mais elevada, aquela que recebe a distribuição de lucros e dividendos de empresas ou pode reduzir as enormes desonerações concedidas sem critério econômico minimamente razoável e sem estudo de impacto. A dívida pode se elevar no início do processo de retomada da intervenção do Estado, mas quando a economia começar a se recuperar, a arrecadação de tributos será maior, e essa dinâmica que se estabelece entre o crescimento do gasto, elevação do PIB e o aumento das receitas públicas será forte o suficiente para gerar recursos para cobrir os gastos com a dívida de forma que a tendência é a dívida cair. Essa estratégia já foi usada em várias economias no passado. Os casos clássicos são o dos EUA na Grande Depressão dos anos 1930 e da Europa no pós Segunda Guerra. Recentemente temos o exemplo de Portugal, com um programa econômico apelidado de “geringonça”. Os portugueses questionaram o ajuste fiscal e se recusaram a adotá-lo num período de crise econômica. A “geringonça” portuguesa é a saída de superação da crise que está dando certo na União Européia. Tem sido considerada a “quarta via” pelos partidos socialistas e social democratas para provar que a asfixia da economia não tem os efeitos que se espera que tenha. O pensamento dominante afasta qualquer possibilidade de utilizar essa estratégia, mas é uma alternativa que está provando que dá certo.

 

Sinditest | O movimento sindical continua ocupando um espaço central na resistência dos trabalhadores? Caso contrário, o que precisa ser mudado?

Denise Gentil |Com certeza tem um espaço central. É a única chance que nós temos. Que os sindicatos se tornem mais aguerridos, mais agressivos, mas persistentes na sua luta. Até hoje, foi a melhor forma de organizar os trabalhadores, mas é importante que ampliem suas fronteiras de atuação ao máximo que puderem. Isso significa fazer movimentações em Brasília. Um exemplo importante foi o dos trabalhadores da área de segurança que invadiram uma sessão de votação da Câmara e conseguiram uma resposta. A ocupação dos trabalhadores da área rural é outro exemplo, essa ocupação foi mais pacífica, porém eficiente. Esses dois grupos atuaram de uma forma extremamente persistente, muito mobilizados e conseguiram fazer com que as regras que a reforma está querendo passar fossem modificadas. No caso dos rurais, conseguiram desfazer tudo, de tal forma que, para eles, nada vai mudar, as regras permanecerão as mesmas de hoje. Mas tem que estar lá, repito, para que essa reforma da previdência, na sua integridade, não tenha nenhuma chance de ser aprovada.

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