Texto publicado originalmente na edição de dezembro do Jornal do Sinditest-PR.
Crie corvos e eles lhe comerão os olhos. O provérbio português poderia ser gravado na lápide do atual governo federal, caso Dilma Rousseff venha de fato a cair depois de o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), aceitar o pedido de impeachment da Presidência da República no início de dezembro.
Ele resumiria a trajetória do primeiro ano do segundo mandato do Governo Dilma. O impeachment é uma espécie de conta do que se convencionou chamar de “governabilidade”. Ao jogar todo o peso do ajuste fiscal sobre os ombros da classe trabalhadora, a base da pirâmide social, o PT terminou de esfarelar seu apoio e, ainda assim, não parece ter conseguido a lealdade dos que estão no topo. Pesa contra o partido, apesar de todas as mutações que sofreu desde que chegou ao poder central, o ranço de ter nascido no seio de um movimento operário.
Antes mesmo de assumir o segundo mandato, Dilma abandonou as promessas campanha. A partir daí, aumentou juros, elevou a carga tributária, extinguiu direitos trabalhistas, sacrificou programas sociais e cortou gastos com saúde e educação. Basicamente, tudo o que em 2014 disse que não faria. A economia se desgovernou, a inflação saiu de controle, o desemprego cresce a cada mês, afetando principalmente os mais pobres, e o governo segue sem ter lá muita ideia do que fazer para sair da enrascada. Os índices mostram que há um grande número de cidadãos brasileiros voltando para situações de miséria e extrema pobreza. Os bancos, naturalmente, seguem batendo recordes de lucro.
À crise econômica somou-se a crise política, regida pelo artífice Eduardo Cunha (PMDB), que já foi definido como picareta-mor da República (a competição é acirrada), o homem que passou todo o ano de 2015 chantageando as instituições e usando seu cargo em defesa própria. Ele ganhou poder e robustez sob o olhar incapaz do PT. Ascendeu ao cargo de presidente da Câmara em fevereiro, apoiado pela oposição capitaneada pelo PSDB, diante da incompetência da articulação política do governo.
Se você tentasse explicar o atual impasse político do país a um estrangeiro, provavelmente conseguiria ouvir o barulho das engrenagens rangendo dentro do crânio do pobre infeliz, na tentativa de compreender o incompreensível. Cunha não é, afinal, do PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer? E o PMDB não vem administrando o país, em consórcio com o PT, nos últimos 13 anos?
Mas o vice-presidente parece articular nos bastidores, com a discrição dos grandes conspiradores, a queda de Dilma. Há vários relatos de Temer reunido com membros da oposição de direita e, dois dias antes da aceitação do impeachment, almoçando com o próprio Cunha. Ao que tudo indica, foi ele que autorizou a operação. E, endossando essa tese, até o momento Temer não veio a público, seja para apoiar ou rechaçar o impeachment.
Caso Dilma caia, e ele quem assume. O vice-presidente teria dito nos bastidores que fará um governo de “união nacional”. O que significa, posto de outra forma, um governo com a participação de PSDB e DEM.
Em outubro, o PMDB apresentou um “pacote de medidas para tirar o país da crise”, um documento chamado “Ponte para o Futuro”, que propõe, entre outras coisas, a reforma da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o fim da indexação do salário mínimo, uma agenda tão liberalizante que provavelmente faria o próprio Fernando Henrique Cardoso arquear uma sobrancelha.
Em perspectiva, parece claro que o documento foi um sinal aos barões da economia: em caso de impeachment, meu desejo é o seu desejo, dizia Temer, nas entrelinhas.
Mesmo assim, com todos os sinais, o Governo Dilma seguiu até o último instante tentando negociar com os liberais de ocasião. A última e mais estarrecedora foi a tentativa de vender, em praça pública, a absolvição de Cunha no Conselho de Ética da Câmara em troca da garantia de permanência de Dilma no cargo. O PT voltou atrás no último momento. Mas não, ao que consta, por uma espécie de objeção de consciência ou princípio moral. Voltou atrás pelo receio de que as chantagens de Cunha não parassem por aí. Tivesse a garantia de que isso não aconteceria, teria – com uma grande sensação de alívio – ajudado a manter como deputado e líder da Câmara um criminoso notório, dono de dinheiro desviado em contas no exterior, e contribuído para o país seguisse sequestrado por um bandido, o que dá uma boa ideia do que o partido se transformou. Diante da negativa de última hora, Eduardo Cunha fez aquilo que se espera de gângster: retaliou.
Não há acordo sobre o que acontecerá daqui pra frente. A oposição de direita no momento não parece ter votos para tirar Dilma (precisa de pelo menos dois terços da Câmara para acender, de fato, o estopim), mas o cenário pode mudar rapidamente. Se o PSDB conseguir mobilizar novamente a classe média que protestou contra o governo nas ruas em março, o jogo inverte. Em casos como esse, de impeachment, a votação no Congresso acontece de forma nominal (cada deputado é chamado e declara seu voto) e será transmitida em TV aberta para todo o país. Isso vai influenciar, e muito, o voto dos deputados. Ninguém quer sair mal na foto, e a maioria dos parlamentares, que faz parte daquele meio-campo embolado que costuma chutar para onde o nariz aponta, tende a seguir os ventos da opinião pública, seja lá quais forem.
Então, é possível que as manifestações de rua tenham grande importância no processo. É, pelo menos, no que acredita boa parte da ciência política. Como o PT ainda tem alguma base social e não vai querer ficar apenas de espectador, não deve surpreender ninguém se a coisa degenerar para violência. Basta lembrar que nas manifestações capitaneadas pelo PSDB este ano pessoas foram agredidas única e simplesmente por usarem roupas vermelhas.
O discurso dos partidários do impeachment nas ruas será o da corrupção. A Lava-Jato acabou por expor ao dia o lado cínico e oportunista do PT. Teria também avançado sobre outros partidos, não fosse um inegável dado da realidade: na mídia e no Judiciário, há uma espécie de predileção pelo PT na hora de estampar escândalos e vazar informações sigilosas.
O que não significa que o PT possa hoje falar sobre ética. Não pode. O jornalista americano Hunter S. Thompson cunhou certa vez uma máxima: “A política é a arte de controlar seu meio”. Com esse propósito, o PT foi às raias da barbárie e, em detrimento do interesse público, farreou com o dinheiro privado de grandes empresários. O PT certamente não é hoje o partido mais corrupto do país, mas não por não ter se esforçado. Mas 13 anos não são o bastante para acumular suficiente experiência e emular aqueles que governaram o país durante todo o tempo antes.
Enquanto na coxia seguem os joguetes palacianos, aqui, no mundo real, onde a esmagadora maioria de nós é obrigada a viver, o futuro imediato parece sombrio. A crise econômica deve se agravar em 2016, isso é um consenso dos especialistas. O processo de impeachment pode durar meses. Até lá, o governo ficará paralisado e o país, em suspenso.
E se você fica muito tempo parado, acaba chamando a atenção dos corvos. Os olhos arrancados talvez sejam os nossos.
Sandoval Matheus,
Assessoria de Comunicação do Sinditest-PR.