Por Eric Gil Dantas, economista do Ibeps
A maioria dos leitores deve ter tomado conhecimento do que ocorreu com a Americanas (Lojas Americanas) neste mês de janeiro. Por conta de alguns erros contábeis (com indícios de fraude) descobriu-se que o lucro da companhia foi inflado por anos, com a consequente valorização dos seus ativos. O rombo contábil chegou a um montante de R$ 20 bilhões. Em meio ao ano de 2020, quando o preço das ações da companhia atingiu seu pico (em grande parte valorizado por essas falcatruas), uma ação da empresa valia R$ 121. Hoje compra-se por R$ 1,34 – preço 99% menor dois anos e meio depois.
Os acionistas de referência da Americanas, com quase 1/3 do total de ações, compõem o famoso trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, donos da 3G Capital – por qual detém o controle de algumas das maiores empresas do mundo: Ab InBev, Kraft Heinz e Burguer King. Os três bilionários tornaram-se símbolo do capitalismo brasileiro agressivo, virando referência para muitos aspirantes à elite.
O trio tem origem no Banco Garantia. Comprada pelo Lemann, um jovem de família rica, em 1971, adotou-se no banco uma lógica de “salários baixos, metas superagressivas, muita pressão e a promessa de que alguns iriam ganhar bastante dinheiro. Assédio e humilhação eram comuns nesses ambientes extremamente machistas”[1]. Este veio a tornar-se o modelo geral de negócios do trio. “O Banco Garantia foi alvo de inúmeras ações por assédio moral, além de ter sido multado pelo Banco Central pela prática de fraude cambial, operações irregulares e remessa ilegal de dinheiro para o exterior”[2].
Ao longo da história da sociedade outras grandes falcatruas também foram sendo punidas pelo caminho como: a republicação dos balanços de 2013 e 2014 da ALL pela Cosan e os ajustes de US$ 15 bilhões no balanço da Kraft-Heinz, em 2019.
No caso específico da Americanas, um fato corrobora com a tese de fraude: diretores (não o trio) da companhia venderam R$ 241,5 milhões em ações da empresa entre agosto e outubro de 2022, pouco tempo antes de explodir o escândalo.
O falso discurso de eficiência das empresas privadas
Vivemos recentemente uma nova onda de privatizações sob os governos Temer e Bolsonaro. Foi acionada a máquina midiática a fim de convencer a população que empresas estatais eram antros de vícios e atrasos, e que as privadas eram santuários de eficiência e racionalidade. No entanto, segundo as pesquisas de opinião publicadas nos últimos anos, as campanhas de governos e empresários não mudaram a cabeça do brasileiro, que continuou a ser majoritariamente contra a privatização de suas grandes estatais.
Inclusive por trás da principal privatização do governo Bolsonaro está o famigerado trio e a empresa de auditoria que deu suporte técnico à falcatrua, a PwC. A 3G ficou como a principal acionista preferencial da Eletrobras (10,88%), acima do BNDESPar (6,68%), segunda maior.
Em nota, a Associação dos Empregados da Eletrobras (Aeel) chamou a atenção para alguns pontos preocupantes da relação do trio com a ex-estatal[3]: (i) “O novo escândalo contábil acende o sinal amarelo para a Eletrobras e deve servir de alerta ao novo governo brasileiro. Está cada vez mais claro que esse modelo de gestão produz apenas resultados de curtíssimo prazo, levando a grandes desastres em médio e longo prazo”; (ii) “a associação informa que o Conselho de Administração da Eletrobras, sob influência da 3G Radar, aprovou recentemente uma nova política de recompra de ações e alterou sua política de pagamento de dividendos”. “Além disso, agraciou seus executivos com aumentos de 400% e adotou um novo método para premiar seus executivos com uma remuneração variável baseada em ações. Importa apenas a busca por lucros, dividendos e bônus no curtíssimo prazo”. Aqui eu cito outro dado, a Americanas já era famosa por ter a maior desigualdade entre salários de empregados e diretores dentre todas as empresas do país, seguida por outra empresa do grupo, o Pão de Açúcar[4]; e, por fim, (iii) “O envolvimento da PwC com escândalos contábeis não é nenhuma novidade. A auditoria já teve seus métodos questionados nos escândalos internacionais da WireCard, Evergrande e, no Brasil, da JBS”.
É difícil imaginar que essa seja a melhor gestão para as nossas estatais, que isto é racionalidade razoável para o brasileiro comum (é bom para os milionários e bilionários que lucram com isso, é verdade). O caso da Petrobras é emblemático, quando a política de dividendos astronômicos (por dois anos seguidos acima de R$ 100 bilhões) foi colocado em prática gerou um empobrecimento geral da população, com algumas das maiores taxas de inflação da história do Real, o que derrubou a renda média advinda da população. Tudo isto para ser a terceira empresa que mais pagou dividendos em todo o planeta terra[5], enquanto cobrava também os maiores preços da história para produtos derivados de petróleo (tudo isso sem ter tido variação nos custos dos seus produtos).
Respinga no funcionalismo através do Funpresp
A crise na Americanas chegou a respingar no funcionalismo público federal, pelo mesmo meio que atingiu outros tantos trabalhadores, o seu fundo de pensão. A Funpresp não detinha diretamente ações da companhia, pois só pode ter participações acionárias através de gestoras contratadas (Asset Managers). Segundo nota[6], a Funpresp-Exe detinha indiretamente R$ 1,6 milhões em ações e R$ 19,90 milhões em debêntures da varejista totalizando R$ 21,5 milhões. As ações, como dissemos, derreteram. As debêntures são dívidas, ou seja, será necessário que a empresa tenha condições de pagá-las para poder recuperar o dinheiro. Atualmente a empresa está em recuperação judicial, o que permite não pagar suas dívidas nos próximos 180 dias. Se não entrar em processo de falência, deverá pagar em algum momento (não 100%, necessariamente, pode haver negociação). Ainda assim, segundo a nota da Funpresp, uma perda de R$ 20 milhões significaria apenas uma variação negativa de 0,3% do seu patrimônio – o que de fato não é nenhum desastre.
De qualquer forma, é importante lembrar que fundos de pensão privados têm grandes riscos aos trabalhadores. Em momentos de crises profundas, como a de 2008, quase todos as grandes economias do mundo apresentaram enormes perdas em seus fundos de pensão privados, Irlanda e Hong Kong sendo casos exemplares (perderam 35% e 30% dos seus valores)[7]. Falcatruas e capitalismo selvagem podem destruir sim a aposentadoria de muito trabalhador. É preciso ficar atento.
[1] https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2023/01/27/salario-baixo-e-pressao-alta-americanas-mostra-que-modelo-explorador-faliu.htm
[2] Idem.
[3] https://einvestidor.estadao.com.br/negocios/eletrobras-elet6-prejuizo-americanas-amer3/
[4] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/09/30/no-brasil-ceo-de-empresa-de-capital-aberto-ganha-em-media-75-vezes-mais-que-funcionarios.ghtml
[5] https://www.infomoney.com.br/onde-investir/petrobras-e-a-3a-maior-pagadora-de-dividendos-do-mundo-no-3o-trimestre-e-deve-fechar-2022-como-a-2a/
[6] https://www.funpresp.com.br/fique-por-dentro/noticias/comunicado-sobre-investimentos-da-funpresp-e-a-situacao-da-empresa-americanas-s-a/
[7] Antolín, P. and F. Stewart (2009), “Private Pensions and Policy Responses to the Financial and Economic Crisis”, OECD Working Papers on Insurance and Private Pensions, No. 36, OECD publishing, © OECD. doi:10.1787/224386871887